A experiência da laicização na crítica da consciência alienada: observações sobre a distância cognitiva de Marx em face do fetichismo da mercadoria.
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Sumário
Os símbolos sociais e o conhecimento.. 1
Marx e o fetichismo da mercadoria.. 1
A liberdade libertadora no mundo da produção.. 1
A experiência da laicização na crítica da consciência alienada.. 1
Marx e as suas duas revoltas na conceituação.. 1
Humanismo e sociologia em Marx.. 1
A laicização como fator de relativização do arcaico e do histórico 1
Introdução
É sabido que a dialética desdogmatizadora de Marx se elabora em revolta contra Hegel e contra a análise hegeliana da realidade social resumida por este na “Filosofia do Direito” (1820, Principes de la philosophie du droit, trad. André Kaan, Gallimard, 1940) e passada em crítica pelo jovem Marx na Introdução da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), ainda que seja notada certa condescendência deste para com “A Fenomenologia do Espírito” [i].
Sem dúvida, o aproveitamento da sociologia de Marx resta metodologicamente ancorado nessa “revolta” fundante, nessa negação do discursivo viabilizando o conhecimento em realidade, cuja procedência é tanto mais confirmada quanto patente se mostra o fracasso de Hegel na sua tentativa de ligar dialética e experiência, ligação fundamental para as Ciências Humanas [ii].
Como já fora assinalada pelos sociólogos, a dialética de Marx encontra-se nas antípodas da dialética de Hegel porque não defende uma tese filosófica pré-concebida, mas busca pôr em relevo a complexidade e o caráter dramático da realidade social e a relatividade dos diferentes quadros sociais em que decorre a vida econômica. Além disso, a dialética de Marx levanta um problema novo que Hegel não considerou nem poderia ter considerado: o da relação dialética entre método dialético e a realidade social e, sobretudo, a realidade humana, que já é dialética [iii].
Os símbolos sociais e o conhecimento
Marx foi sociólogo no sentido estrito de reconhecer o fenômeno humano da laicização.
Com efeito, a laicização é uma dimensão permanente da experiência humana que se redescobre a partir do problema do conhecimento nas sociedades modernas. É implicada no desencantamento do mundo à medida que este, por sua vez, traz consigo a generalização da moralidade de aspiração, como expressão da tomada de consciência da imperfeição do mundo, estudada como se sabe no âmbito da sociologia por Max Weber [iv] em paralelo com a descrença dos mitos das religiões históricas – a desmitologização. Neste sentido, falar de laicização é pôr em relevo a desdogmatização do saber.
Trata-se, portanto, de uma dimensão humana com relevância específica para a sociologia. A permanência da laicização como fato social põe em descoberto a impossibilidade em opor o histórico e o arcaico. Daí a compreensão de que, nas sociedades históricas, o saber é inseparável das mitologias, de tal sorte que os mitos e os símbolos sociais são intermediários positivos do conhecimento.
A laicização constante dos simbolismos sociais é uma via permanente para o saber renovado.
Com efeito, a laicização acontece quando deixamos de temer ou recear as forças que Nós-outros mesmos criamos. Vale dizer, é preciso assumir e afirmar o ponto de vista microssociológico dos Nós-outros humanos para pôr em relevo a laicização, como experiência humana irredutível no desenvolvimento da produção material e das atividades práticas, viabilizando a afirmação irreversível do Homo Faber [v].
Tema crítico, a laicização adquiriu procedência nos meios científicos a partir das análises de sociologia econômica desenvolvidas por Karl Marx em torno à crítica da Economia Política, com a descoberta da realidade social por trás do fenômeno do fetichismo da mercadoria no capitalismo, que muitos sociólogos da literatura e críticos da cultura estudam sob a rubrica da reificação [vi].
Marx e o fetichismo da mercadoria
Se à primeira vista a referência à laicização como foco do conceito sociológico de mudança social permanente e como experiência fundante do próprio ponto de vista sociológico pode parecer pouco usual é porque há relutância por parte de pensadores influentes em reconhecer que a elaboração sobre essa experiência humana essencial (deixar de temer ou recear as forças que Nós-outros mesmos criamos) qualifica a obra de Marx na sociologia.
Marx foi sociólogo no sentido estrito de reconhecer a laicização como experiência humana e a relatividade do arcaico e do histórico porque, ao chegar à descoberta da realidade social por trás do fetichismo da mercadoria, desencadeou o “desencantamento” da Economia Política, evidenciando nas representações desta última o estágio arcaico da consciência alienada e do pensamento a ela subjacente.
Na dialética das alienações desenvolvidas em “A Ideologia Alemã” (elaborada em 1845, mas publicada depois de 1883, postumamente [vii]), na qual como disse em resumo (a) – o trabalho é alienado em mercadorias; (b) – o indivíduo é alienado à sua classe; (c) – as relações sociais são alienadas ao dinheiro, nota-se que essas alienações são afirmadas como expressões da revolta de Marx contra Hegel e contra a equivocada análise hegeliana da realidade social, que projeta a alienação da sociedade e do homem em proveito do Estado.
Todavia, o ponto de vista microssociológico dos Nós-outros humanos não se limita em confirmar a alienação contra a análise hegeliana.
O desocultação da consciência alienada é igualmente afirmado quando, já igualmente em revolta contra a Economia Política no célebre “Rascunho da Contribuição à Crítica da Economia Política” (“Grundrisse..”), Marx relaciona diretamente a própria constituição da Economia Política à dominação pelas alienações, repelindo o desconhecimento do trabalho vivo.
►De fato, elaborando a Economia Política em modo separado da sociologia econômica, “os economistas burgueses estão de tal modo impregnados pelas representações características de um período particular da sociedade que a necessidade de certa objetivação das forças sociais do trabalho lhes parece inteiramente inseparável da necessidade da desfiguração desse mesmo trabalho pela projeção e pela perda de si, opostas ao trabalho vivo” [viii].
E Marx prossegue: “eles (os economistas) acentuam não as manifestações objetivas do trabalho, da produção, mas a sua deformação ilusória, que esquece a existência dos operários, para reter apenas a personificação do capital, ignorando a enorme força objetiva do trabalho que se exerce na sociedade, e que está na própria origem da oposição dos seus diferentes elementos” (ib.).
A liberdade libertadora no mundo da produção
Na medida em que integra a desocultação da consciência alienada levando à recuperação da prevalência da sociedade sobre a economia, o realismo sociológico de Marx é voltado para resgatar os Nós-outros humanos desfigurados pela alienação como projeção para fora de si ou perda de si, em que os economistas burgueses do século XIX situavam a objetivação das forças sociais do trabalho.
Há, pois, na abordagem de Marx o reconhecimento de uma negação do discursivo posta na e com a experiência humana que lhe permite alcançar distância cognitiva fundamental em relação ao universo mental bloqueado da Economia Política e por esta via situar a consciência alienada como fenômeno de psicologia coletiva dentro da sociologia, sem o que seria impossível descobrir a realidade social oculta (o trabalho humano, vivo).
Penetrado pelas características de um período particular da sociedade que leva à necessidade da desfiguração do trabalho, no universo mental bloqueado da Economia Política clássica predominam as representações resultantes da pressão que exercem gradualmente as forças sociais que não conseguimos dirigir.
Por sua vez, tal pressão das coisas impõe-se como força estranha que já não surge como o poder unido dos homens, mas, antes, surge como um elemento situado fora deles próprios, de que eles (os homens) não conhecem nem a origem, nem o objetivo (surge no exterior do psiquismo coletivo).
A experiência humana que Marx reconhece e que o eleva por encima dessa mentalidade impregnada pelas representações de uma força estranha situada fora dos homens, não se esgota na crítica histórica, mas é experiência da laicização do fetichismo da mercadoria em sociologia econômica: reconhecimento de que os Nós-outros humanos deixam de temer as forças que criam, e que esta liberdade libertadora é um fato essencial do mundo da produção [ix] .
Ao deixar de temer aquela força estranha e aplicar em sua crítica a experiência da laicização que dessacraliza o fetichismo da mercadoria, Marx desencadeou o desencantamento da Economia Política, evidenciando nas representações desta última o estágio arcaico da consciência alienada e do pensamento subjacente.
A experiência da laicização na crítica da consciência alienada
(Sobre a distância cognitiva)
►Deixando de lado a teoria bem conhecida, mas bastante improvável, que representa um suposto “ponto de vista do proletariado” [x], a conjectura da laicização aqui proposta em relação ao tipo de experiência que alimentou a atitude intelectual de Marx e o levou a alcançar distância cognitiva em face do fetichismo da mercadoria, para empreender a crítica da mentalidade dos economistas burgueses e desmistificar a consciência alienada, implica um aspecto da evolução intelectual de Marx que inclui o tema crítico histórico da “filosofia nova” de Feuerbarch, mas ultrapassa o quadro do humanismo prometeico do século XVIII e XIX para mergulhar na sociologia.
Sem embargo, a conjectura da laicização como experiência originária assimilada na atitude intelectual de Marx pode ser vista com clareza. Basta observar o escrito da “Introdução da Contribuição à Crítica da filosofia do Direito de Hegel” (1843), onde a laicização da religião se afirma como o princípio de desdogmatização da filosofia e do pensamento, o princípio fundante que abre a passagem para uma ciência do homem e da sociedade mediante a inversão da dialética de Hegel [xi].
O caráter mesmo do humanismo do século XVIII a impulsionar a Época das Luzes deixa claro a alta relevância da laicização como experiência demolidora dos dogmatismos, já que voltado para intensificar a confiança do homem em sua indústria e, por esta via, estabelecer o primado do natural e do mundo humano sobre o divino – daí humanismo prometeico. E todos sabem a influência do humanismo prometeico sobre o jovem Marx, através de Feuerbach, no ambiente dos hegelianos após o desaparecimento de Hegel.
Desta forma, não há inesperado algum em admitir que a distância cognitiva assumida por Marx resulta da aplicação da laicização na descoberta do fetichismo da mercadoria, levando à desmistificação da consciência alienada, tanto mais que um paralelo pode ser estabelecido com os trabalhos de outros sociólogos do início do século XX, como os mencionados Lucien Levy Bruhl e Marcel Mauss, para o que diz respeito às “formas que demonstram a primeira vista pertencerem a um período social em que a produção e as suas relações regem o homem ao invés de serem por ele regidas” (o período das sociedades arcaicas e do mito do maná), e que parecem à consciência burguesa uma necessidade muito natural [xii].
Trata-se como disse da laicização do fetichismo da mercadoria em sociologia econômica, com a recuperação do trabalho humano, vivo: “eles (os economistas) acentuam não as manifestações objetivas do trabalho, da produção, mas a sua deformação ilusória, que esquece a existência dos operários, para reter apenas a personificação do capital, ignorando a enorme força objetiva do trabalho que se exerce na sociedade (a sociabilidade), e que está na própria origem da oposição dos seus diferentes elementos” (ib).
Práxis social e dialética
Notem que a conjectura de aplicação da laicização, embora ponha em relevo a matriz prometeísta (no caso, a aspiração à libertação total de certos aspectos da alienação), não implica revalorizar o humanismo de Karl Marx em detrimento da sociologia.
É uma conjectura sociológica exclusiva. O caráter demolidor dos dogmatismos, do conceitual ou, em modo mais amplo, do discursivo, é um dado básico da experiência humana vivida ou construída com método, que há muito é compreendida no desenvolvimento da ciência.
Os epistemólogos já esclareceram que o espírito científico não repousa sobre crenças, sobre elementos estáticos, sobre axiomas não discutidos. A retificação dos conceitos realizada pela Relatividade, como disposição da cultura científica do século XX, é a prova do incremento psicológico que faz avançar a história dinâmica do pensamento. É no momento em que um conceito muda de sentido que ele tem mais sentido”; é então “um acontecimento da conceituação”. Não se pode crer na permanência das formas racionais, na impossibilidade de um novo método do pensamento. “O que faz a estrutura não é a acumulação; a massa dos conhecimentos imutáveis não tem a importância funcional que se supõe”.
Se o pensamento científico é uma objetivação, “deve-se concluir que as retificações e as extensões são dele as verdadeiras molas”. Ao realizar o “incremento psicológico”, o pensamento não newtoniano absorve a mecânica clássica e dela se distingue; produz uma convicção que se prova como progresso [xiii].
Por sua vez, a disposição da experiência nas ciências da natureza se refere a conteúdos que neles mesmos nada têm de dialéticos ao passo que a experiência arregrada em sociologia, por sua vez, relaciona-se a conteúdos dialéticos, como o é a própria realidade social.
Do ponto de vista da práxis social, qualquer teoria da experiência tomada como unívoca e servindo a uma pré-concepção filosófica (sensualismo, associonismo, positivismo, pragmatismo), deforma a experiência, a estanca, destrói o imprevisível, a variedade infinita, o inesperado de seus quadros.
Realidade social, experiência e dialética consistem nas obras como o Direito, o Conhecimento, a Moral, incluindo seu aspecto de controles ou regulamentações sociais, por um lado, e, por outro lado, nos atos coletivos e individuais (juízos, intuições), frequentemente interpenetrados, conforme podem ver nas atitudes coletivas, implicando um quadro social em que escalas particulares de valores são aceites ou rejeitadas.
Em consequência, revela-se um exagero supor que no mundo dos produtos a alienação seria total: os atos não se deixam reduzir à objetivação nas obras de civilização e, por esta via, o conceito de estrutura social mostra-se o mais dialético. A proposição de que o mundo dos produtos – incluindo os argumentos, as teorias, os livros, os acervos, as bibliotecas – deva ser compreendido como não humano, sustentada por um filósofo formalista da ciência importante como Karl Popper [xiv], é estranha à sociologia diferencial.
A experiência é o esforço dos homens, dos Nós-outros, dos grupos, das classes, das sociedades globais para se orientarem no mundo, para se adaptarem aos obstáculos, para os vencer, para se modificarem e modificar seus arredores, sendo a essa compreensão que se refere a noção de práxis como sendo de uma só vez coletiva e individual.
Marx e as suas duas revoltas na conceituação.
Em relação à evolução de Marx, viram sua atitude de revolta contra as maneiras discursivas de julgar de Hegel e depois contra as da Economia Política, e que suas descobertas se desdobram dessas duas revoltas na conceituação: (1) contra a análise hegeliana da realidade social em que, equivocadamente, Hegel estabeleceu a alienação da sociedade e do homem em proveito do Estado; (2) contra a Economia Política, que se mostra impregnada pelas representações (coletivas) características de um período particular da sociedade, em que a primazia cabe às forças materiais.
A tese aqui é de que as duas revoltas na conceituação engajadas por Marx nutrem-se na experiência da laicização, como experiência humana demolidora dos dogmatismos, que não somente ultrapassa o quadro intelectual dos jovens hegelianos, mas mergulha na sociologia.
Existe ampla bibliografia sobre a atividade do jovem Marx e suas relações no ambiente prometeísta dos jovens hegelianos, logo após o desaparecimento de Hegel. Bastam aqui as observações de Ernst Bloch em sua obra “Sujet-Objet” [xv], que dimensionam admiravelmente a contribuição de Feuerbarch para a superação do hegelianismo.
Observam que a “filosofia nova”, antropológica, então debatida no ambiente prometeísta dos jovens hegelianos é tida se encontrar, a respeito da filosofia racional de Hegel, na mesma proporção que esta a respeito da teologia. Hegel havia dito que, no homem, Deus se conhece ele mesmo; Feuerbach retorna a proposição: em seu Deus, o homem se conhece ele mesmo somente. Por consequência, os magníficos atributos divinos que o homem conferiu no mais além à sua própria alienação, devem ser restituídos à sua verdadeira origem: o coração humano, o amor humano, a tendência humana à perfeição.
Ao modo encontrado na época do iluminismo, Feuerbach reduz os deuses a sombras gigantescas da ignorância, ao mesmo tempo em que os apresenta como a melhor parte do homem duplicado, até defini-los como as projeções transcendentes do conteúdo dos desejos humanos ¾ aspirações do coração transformadas em seres efetivos.
Tal sua contribuição: Feuerbach se empenhou em levar a sério a importância e a dificuldade da religião para a “filosofia nova”. Ele se contrapôs à indiferença que, a esse respeito, contaminou o ambiente após o desaparecimento de Hegel ¾ quando se tomava por ateísmo o que não passava de omissão para com a esfera do religioso.
Sua antropologização abre então uma possibilidade de reflexão sobre o problema de um legado religioso, e o ateísmo, ao invés de ser um fenômeno de rejeição, recebe um conteúdo (vem a ser identificado à alienação religiosa). Foi Feuerbach quem chamou a atenção de Marx para o termo “alienação”, empregando-o para descrever a sujeição da humanidade à religião que ela própria criara.
Enfim, essa problemática feuerbachiana dos primeiros escritos de Marx está, como se sabe, na origem da chamada “concepção materialista da história”.
Humanismo e sociologia em Marx
►Na verdade, não eram a “alienação religiosa” nem o problema do ateísmo que interessavam a Marx, mas a construção de uma nova ciência do homem e da sociedade em ato, como diria Saint-Simon: isto é, a sociologia.
A alienação é um termo que tem ascendência no humanismo prometeico comum à maior parte dos filósofos do século XVIII e que Marx, influenciado por Feuerbach, foi buscar em “A Fe Fenomenologia do Espírito”, dando-lhe, porém, vários sentidos sociológicos que ele nunca tivera em Hegel nem em Feuerbach.
Em Hegel, dialética é primeiro que tudo Deus, em seguida as suas emanações, o Espírito e a Consciência que se alienam no mundo, para reconduzi-lo a Deus e à sua eternidade vivente.
Referida à práxis social, em Marx, a alienação é (a) medida da autonomia do social, (b) exteriorização do social, e (c) perda da realidade, como graus de cristalização da realidade social que podem entrar em conflito com os elementos espontâneos desta, levando-a a tornar-se vítima de ideologias falazes, tendo por resultado a dominação e a sujeição que ameaçam as coletividades tanto quanto os indivíduos [xvi] .
Daí que o ponto de vista da antropologização (Hegel, Feuerbarch) se converte em Marx em ponto de vista da laicização, como experiência humana demolidora dos dogmatismos.
A antropologização é reduzida ao momento da laicização, em que os homens deixam de temer as forças que criam. Hegel havia dito que, no homem, Deus se conhece ele mesmo; Feuerbach retorna a proposição e assinala a laicização da religião em humanismo: em seu Deus, o homem se conhece ele mesmo somente.
Reconhecendo-o e retirando-o do debate então centrado na chamada nova filosofia, Marx explora o momento da laicização dos dogmas, tomando-o como o foco da nova ciência do homem e da sociedade.
Em sua orientação original, importa menos projetar um conteúdo para o ateísmo, que Feuerbarch encontrou na alienação religiosa, mas, antes, aprofundar a laicização dos dogmatismos, fazer avançar a experiência [dialética] demolidora dos conceitos cristalizados.
Não se busca mais, em Marx, elaborar uma nova filosofia a partir da antropologização, mas sim fundar a sociologia e a dialética.
Práxis e sociologia
O alcance desalienante da dialética sociológica é indireto e, mais do que um procedimento desmistificador do “falso saber”, a dialética deve ser vista a partir do empirismo pluralista efetivo (multiplicidade e irredutibilidade dos Nós-outros e das relações com outrem), isto é, como uma orientação demolidora não somente dos dogmatismos em geral, mas, notadamente, a dialética sociológica derruba o preconceito filosófico inconsciente que afirma um Eu genérico idêntico em todos.
Antes de subordiná-la exclusivamente à historicidade e ao saber histórico, houve que desenvolver a dialética como ligada à experiência pluralista e à variabilidade, isto como sabem por exigência da constatação de que, em os Nós-outros, as relações com outrem não podem ser identificadas nem às fases históricas da sociedade global, nem aos agrupamentos particulares, como houvera proposto Durkheim.
E isto é assim porque a diversidade irredutível dos Nós-outros faz com que tais manifestações da sociabilidade por relações com outrem não admitam síntese que ultrapasse a combinação variável dessas relações microscópicas, como espécie da sociabilidade, tornando como disse artificialista toda a tentativa para identificar as relações com outrem às fases históricas da sociedade global ou aos agrupamentos particulares.
Mesmo no estado muito valorizado pelos estudiosos da história social, quando as relações com outrem são distribuídas hierarquicamente e servem de ponto de referência a uma estrutura social (por exemplo: relações com o Estado, relações com os empresários, relações com os partidos políticos etc.), a síntese não ultrapassa como sabem o estado de combinação variável. É pela microssociologia que se põe em relevo a variabilidade no interior de cada grupo, de cada classe, de cada sociedade global, de cada estrutura social.
Graus de prometeísmo
Há diferença entre o tempo sociológico e o tempo histórico. O caráter histórico de uma realidade social é múltiplo, havendo graus de percepção de que a ação humana concentrada pode mudar as estruturas e permitir revoltas contra a tradição (graus de prometeísmo).
Expresso na historiografia, o saber histórico se concentra exclusivamente sobre a realidade histórica, acentuando muito o primado das sociedades globais como sujeitos “fazendo história”.
Por sua vez, a sociologia salienta “o complexo jogo” entre as escalas do social que se pressupõem uma a outra, quer dizer: procura confrontar a realidade histórica com “os planos sociais não históricos ou pouco históricos”, como o são os elementos microssociais (os Nós-outros, as relações com outrem) e os grupais, respectivamente.
Sobressai que as manifestações prometeicas da realidade social são as que menos se prestam à unificação, registrando-se aqui um segundo foco de tensão com os historiadores, já que estes tendem para uma unificação muito intensa da realidade social, enquanto o sociólogo reconhece a resistência da realidade histórica à unificação, facilmente verificada no conflito de versões.
Por tal razão, o sociólogo busca acentuar a diferenciação e a diversificação, que considera muito ativada pelos planos sociais em competição. Daí a descoberta da multiplicidade dos tempos sociais [xvii].
O caráter muito mais continuísta do método histórico se observa na medida em que a história, como ciência, “é conduzida a vedar as rupturas, a lançar pontes entre diversas estruturas”, o que é uma manifestação do pensamento ideológico.
Ao referir sua dialética à práxis social (por influência de Saint-Simon e Proudhon, que os assimilou e os superou), Marx ultrapassou a própria vertente do humanismo burguês. O “Eu genérico” idêntico em todos é um preconceito legado da filosofia do século XVIII através de Rousseau (vontade geral) e Kant (intuição transcendente), e preservado inadequadamente na crença metodológica de que existe uma estrutura lógica na base de toda a sociedade.
Como práxis e mentalidade da classe burguesa, o “Eu genérico” foi examinado por Henri Lefebvre em seu notável ensaio sobre o psiquismo da estrutura de classes, que será comentado aqui, logo adiante.
***
A laicização como fator de relativização do arcaico e do histórico
Acresce que o fetichismo da mercadoria condicionando a consciência social (como viram em relação aos economistas) não é sem paralelo na condição humana.
Neste ponto cabe ajustar estes comentários.
Com efeito. Na medida em que precisou ultrapassar as metáforas das análises por demais alegóricas da antropologia filosófica desenvolvida por Ernst Cassirer [xviii], por exemplo, o problema das ciências humanas e sociais passa por esse paralelo com o fetichismo da mercadoria descoberto por Marx, que introduz a relatividade do arcaico e do histórico.
Do ponto de vista da sociologia diferencial, e à exceção de Ernst Bloch que descobriu a não contemporaneidade no processo histórico [xix], as tentativas marxistas de Engels a Sartre fracassaram em grande parte devido ao etnocentrismo da história e à projeção exagerada da estrutura de classes sobre os tipos de sociedades globais diferenciados ao longo das civilizações.
Da mesma maneira em que Engels projetou as relações de propriedade para além da história sem dimensionar o peso do elemento sobrenatural nas sociedades “primitivas”, Sartre em sua “Critique de la Raison Dialectique” imaginou que o foco mais originário da dialética seria a práxis das próprias classes sociais, produzindo uma sociologia onde o coletivo (no seu caso um serialismo) não surge dos macrocosmos das irredutíveis formas de sociabilidade, como já assinalei em outro comentário [xx] .
Quando não é o etnocentrismo, impera o retorno aos preconceitos filosóficos herdados do século XVIII (consciência transcendental em Kant; vontade geral em Rousseau) e busca-se fundar a metodologia das ciências sociais em um estruturalismo lógico presente na base de toda a sociedade, como sugeriu Claude Lévi-Strauss.
Por contra, ao tempo em que Marx constata o estágio arcaico da consciência alienada, outros sociólogos como Lucien Lévy-Bruhl, primeiro, e Marcel Mauss (1872 – 1950), depois, (este último colaborador direto de Durkheim) aprofundavam os estudos sobre as sociedades arcaicas e sobre o mito arcaico do maná-mágico e descreviam a vida nesse tipo de sociedades – vida humana, social, econômica e política – como sendo inteiramente penetrada pelo sobrenatural, seja transcendente (Religião) ou imanente (Magia como obra de civilização [xxi]), cujo conflito e cooperação constituem sua tensão e princípio motor.
Na leitura sociológica, para descrever o estágio arcaico da consciência alienada deve-se relacionar a teoria do fetichismo da mercadoria à análise do mito arcaico do maná-mágico com aplicação da laicização.
Neste sentido, não há negar o mérito de Gurvitch em reaproveitar os materiais etnográficos e aportar novos conhecimentos imprescindíveis à compreensão do Homo Faber, inclusive incorporando neste marco as análises positivas (não místicas) de Henri Bérgson, de que já ofereci um comentário em outra oportunidade [xxii].
Para uma análise mais desenvolvida, veja “Karl Marx e a Sociologia do Conhecimento”.
NOTAS
[i] A “Introdução da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel“, de Karl Marx, é um escrito de 1843 que apareceu em 1844, no primeiro número dos Annales Franco-allemands (Deutsch-französische Jahrbücher), uma revista dirigida por Karl Marx no momento de seu exílio em Paris. Quanto a Hegel, há boa edição francesa de sua grande obra. Vejam: Hegel, G.W.F.: “La Phénoménologie de l´Espirit” – Tome I e Tome II, Paris, Aubier, 1939 (Tome I), 358 pp.; 1947 (Tome II), 359 pp.; Versão francesa por Jean Hyppolite tirada da Edição Lasson – J. Hoffmeister, W. II 4º ed., 1937; título em Alemão: “Die Fhaenomenologie des Geistes”.
[ii] Gurvitch, Georges (1894-1965): “Dialectique et Sociologie“, op.cit.
[iii] Cf. Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, 1986, 567 pp. (1ª ed, PUF, 1957). Op. cit. Pág.279.
[iv] Wrigth Mills, C. e Gerth, Hans – Organizadores: « Max Weber : Ensaios de Sociologia », 1971, 530 pp.(1ª edição em Inglês : Oxford University Press, 1946). Cf. sobre a Teodicéia às págs. 318 sq e 409 sq.Op.cit.
[v] Esse tema da experiência da laicização na afirmação do Homo Faber é desenvolvido com profundidade em sociologia diferencial por Gurvitch, que investiga o problema da origem da técnica e da moralidade que lhe corresponde (a moralidade autônoma em face das crenças em símbolos tidos por sobrenaturais) tomando por fonte de interpretação e reflexão a laicização no ambiente dos melanésios, como tipo originário de sociedades arcaicas analisado por Marcel Mauss com os materiais empíricos acumulados desde os trabalhos etnográficos de Codrington ( Robert Henry, 1830 -1922 – “The Melanesians: Studies in their Anthropology and Folk-Lore“, 1891). Cf. Gurvitch, Georges: “La vocation actuelle de la sociologie”- Tome II : “Antécédents et perspectives”, Paris, Presses Universitaires de France, 1963, 504 págs (Bibliothèque de Sociologie Contemporaine).
[vi] Como transposição do coeficiente de realidade do indivíduo para o objeto inerte, a reificação é um processus psicológico permanente, agindo secularmente no âmbito da produção para o mercado. Cf. Goldmann, Lucien: Recherches dialectiques. Paris: Gallimard, 1959. Pour une sociologie du roman. Paris: Gallimard, 1973, op. cit.
[vii] Cf. “A Ideologia Alemã”, tradução francesa, ed. Molitor, vol. VI p.240, apud G. Gurvitch, “A Vocação…”, vol. II, op.cit.
[viii] Cf. Marx. Karl: “Grundrisse…”, edição francesa, pág.176, apud Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.. II”, págs. 341 sq.
[ix] Liberdade libertadora, ou seja, liberdade para a liberdade, porque a liberdade que se afirma contra o medo / temor é necessariamente duplicada: é preciso ja ser livre para deixar de temer as forças que criamos como sobrenaturais. Na verdade, a liberdade afirma-se sempre libertadora. A tese contrária é impossível: uma vez exercida, nenhuma liberdade deixa de ser perpetuamente afirmada. Sem embargo, pode-se admitir o abuso de liberdade. Por outro lado, nas sociedades históricas, chega-se à consciência da liberdade exercida nas tentativas de planejar e dirigir as mudanças de estrutura social.
[x] A coincidência entre o psiquismo de classe e a consciência de classe só tem sentido em uma teoria privilegiando uma consciência de classe especial, como o faz o jovem Lukacs em “Histoire et Conscience de Classe“, que atribui à consciência de classe do proletariado um caráter singularmente privilegiado. Tal teoria enseja uma visão majestosa e de estilo filosoficamente clássico, criticável por fazer o proletariado delegar sua consciência em representantes que, a mais do plano político, encarnariam a sua concepção do mundo. Por isso, em lugar de realizar a filosofia ultrapassando-a conforme o pensamento de Marx, o jovem Lukacs restitui à filosofia um papel inquietante. Cf. Lefebvre, Henri (1901 – 1991): “Psicologia das Classes Sociais“, in Gurvitch e al.: Tratado de Sociologia – vol.2‟ (Traité de Sociologie, PUF 1960), Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, pp.505 a 538.
[xi] Uma boa edição digital da Introdução da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel encontra-se acessível na Web Marxists Internet Archives: http://www.marxists.org/francais/marx/works/1843/00/km18430000.htm
[xii] Cf. Marx. Karl: “Grundrisse…”, edição francesa, pág.176, apud Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.. II“, págs. 341 sq. Op.cit.
[xiii] Bachelard, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, editora Abril, 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1ª Ed. 1935).
[xiv] Popper, Karl: ‘Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária’, São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/editora Itatiaia, 1975, 394 pp, traduzido da edição inglesa corrigida de 1973 (1ª ed: Londres, Oxford University Press, 1972).
[xv] Cf. Bloch, Ernst (1885-1977): “Sujet-Objet: Éclaircissements sur Hegel”, Paris, Ed. Gallimard, 1977, 498 pp.;Versão francesa por Maurice de Gandillac, da edição alemã de Frankfurt, Ed. Surhkamp, 1962; (1ª Ed.em alemão: 1951).
[xvi] Cf. Gurvitch: “A Vocação Actual da Sociologia-vol. 2”, op.cit.
[xvii] A multiplicidade dos tempos sociais foi objeto de análise e descrição por Gurvitch em sua obra citada “Determinismos Sociais e Liberdade Humana”.
[xviii] Cassirer, Ernst (1874 –1945) : “La Philosophie des Formes Symboliques”(La Conscience Mythique), trad. Jean Lacoste, Paris, les editions de Minuit, 1972, 342pp, (1ª edição em Alemão,1925).
[xix] Ver meus comentários em “O Tradicional na Modernização: leituras sobre Ernst Bloch”, http://www.oei.es/salactsi/ErnstBloch.pdf ,Web da OEI, Maio de 2009, 130 págs.
[xx] Cf. Lumier, Jacob (J.): “A dialética sociológica, o relativismo científico e o ceticismo de Sartre: aspectos críticos de um debate atual do século vinte“, OpenFSM, artigo, 50 págs pdf, 2009 link: http://openfsm.net/people/jpgdn37/jpgdn37-home/A-Dialetica-Sociologica-_Sartre_Gurvitch.pdf
[xxi] Seguindo a Marcel Mauss e aprofundando a abordagem diferencial Gurvitch reconhece que o mito do Maná é independente do totemismo, privilegiado este por Durkheim.
[xxii] Leitura da Teoria de Comunicação Social desde o ponto de vista da Sociologia do Conhecimento (Ensaio, 338 págs.). Web da O.E.I. / E-book / pdf, 2007http://www.oei.es/salactsi/conodoc.htm http://www.oei.es/salactsi/lumniertexto.pdf vejam páginas de 184 a 196.